A recente proposição do Projeto de Lei 508/2025, que visa instituir a Política Nacional de Desenvolvimento e Aprimoramento dos Estabelecimentos Prisionais de Segurança Máxima, reacende um debate crucial na sociedade brasileira: o combate ao crime organizado e a segurança pública. A iniciativa, que busca endurecer o sistema carcerário, é apresentada como uma solução direta para o fortalecimento do Estado no enfrentamento de facções criminosas. No entanto, é fundamental analisarmos o PL sob uma perspectiva mais ampla, considerando seus potenciais efeitos, os riscos de uma política puramente punitiva e a importância de alternativas preventivas, como os investimentos em cultura e educação.
Uma das principais premissas do projeto é a de que o endurecimento das penas e a construção de presídios de segurança máxima são o caminho para desarticular o crime organizado. Embora a necessidade de um sistema prisional eficaz e seguro seja inegável, a história recente nos mostra que a mera massificação prisional não resolve o problema. Pelo contrário, muitas vezes agrava a situação. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2023, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 830 mil pessoas presas. Um olhar atento sobre esses números revela um padrão histórico de desigualdade: a população negra, que representa pouco mais da metade da população brasileira, é desproporcionalmente afetada, compondo cerca de 68% dos presos no país. Essa estatística alarmante expõe a violência estrutural e o racismo que permeiam nosso sistema de justiça criminal, onde a polícia, em muitos casos, atua de forma opressora e seletiva.
O PL 508/2025, ao focar exclusivamente na repressão, corre o risco de aprofundar essa lógica perversa, reforçando o ciclo de encarceramento em massa sem atacar as raízes do problema. É um erro acreditar que a segurança se constrói apenas com muros mais altos e celas mais duras. A segurança real e duradoura se constrói com oportunidades, educação e, sobretudo, com a prevenção.
PRINCIPAIS PONTOS DO PL 508/2025
O PL 508/2025, de autoria do deputado Kim Kataguiri (União-SP), institui a Política Nacional de Desenvolvimento e Aprimoramento dos Estabelecimentos Prisionais de Segurança Máxima. O objetivo da proposta é combater a precariedade do sistema penitenciário brasileiro por meio de modernização da infraestrutura, capacitação de pessoal e fortalecimento da segurança.
Os principais pontos do projeto são:
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- Destinação de recursos: O PL propõe revogar os benefícios fiscais da Lei Rouanet, estimando que isso geraria cerca de R$ 1,5 bilhão por ano para custear a nova política de modernização do sistema prisional.
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- Alterações no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD): O projeto propõe mudanças significativas no RDD, regime aplicado a presos que cometem crimes dolosos ou faltas graves.
Aumento de prazo: O prazo máximo do RDD passaria de 2 para 8 anos, com a possibilidade de prorrogação sucessiva.
- Inclusão de restrições: O texto inclui a vedação de visitas e de saída da cela como características do RDD.
- Expansão do escopo: A proposta amplia o rol de pessoas que podem ser submetidas ao RDD para incluir presos por crimes com violência ou grave ameaça e por crimes contra a administração pública.
É nesse cenário que a discussão sobre o financiamento de políticas públicas se torna ainda mais relevante. A ideia de que o investimento em segurança deve se restringir apenas à construção de mais cadeias ignora a complexidade do problema e o potencial de outras abordagens. Uma dessas abordagens, que tem sido erroneamente colocada em xeque, é o investimento em cultura por meio da Lei Rouanet.
A LEI ROUANET COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO
Nesse contexto, surge a falsa dicotomia entre investimentos em segurança e em cultura. O discurso de que a Lei Rouanet, a Lei de Incentivo à Cultura, deve ser descontinuada para financiar a construção de presídios de segurança máxima é simplista e perigoso. Ignora-se que a Lei Rouanet, por meio de seus diversos projetos, atua como uma poderosa ferramenta de prevenção social.
Muitos dos projetos financiados pela Lei Rouanet são voltados para as periferias, oferecendo oficinas de música, teatro, dança e artes visuais a jovens em situação de vulnerabilidade social. Essas iniciativas, em vez de reprimir, abrem horizontes, oferecem perspectivas de futuro e afastam os jovens do aliciamento pelo crime organizado.
O texto do PL 508/2025 reforça uma lógica punitivista que, historicamente, não se mostrou eficaz. Ao invés de direcionar recursos para a educação, cultura e oportunidades de emprego para jovens em situação de vulnerabilidade, o projeto aposta na construção de mais presídios, perpetuando um ciclo vicioso de violência e encarceramento em massa. Essa abordagem é perigosa e, além de não resolver o problema, pode agravar a situação social e econômica das comunidades mais pobres.
Um dos principais equívocos da proposta é desconsiderar a importância da prevenção. O combate à criminalidade não pode ser resumido à construção de muros mais altos e celas mais seguras. A verdadeira segurança pública se constrói nas escolas, nas creches, nos centros culturais e nos projetos sociais que oferecem alternativas concretas para os jovens.
Nesse sentido, o Professor Douglas Nunes em 2010, enquanto servidor do Ministério da Cultura à época, teve a experiência de conhecer o projeto Ação Social pela Música do Brasil que é realizado dentro da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, coordenado pela Fiorella Solares, projeto ensina música clássica à comunidade, que é um exemplo brilhante de como a cultura pode transformar vidas e prevenir a entrada de jovens no mundo do crime. Por meio da música, o projeto não apenas ensinou uma nova habilidade, mas também ofereceu um ambiente de acolhimento, disciplina e perspectivas de futuro. O fato de que o Professor Douglas Nunes visitou a iniciativa e testemunhou os resultados positivos é uma prova irrefutável do potencial da cultura como ferramenta de inclusão e desenvolvimento social.
É lamentável que o PL 508/2025 não reconheça o valor de iniciativas como essa. A Lei Rouanet, muitas vezes alvo de críticas, é um importante instrumento de fomento a projetos que, como a Ação Social pela Música do Brasil do Morro Dona Marta, criam pontes em vez de muros. É preciso enxergar que o dinheiro investido em cultura e educação não é um gasto, mas sim um investimento estratégico com retorno inestimável a longo prazo, tanto para a segurança pública quanto para o desenvolvimento humano.
Em vez de focar apenas na repressão, o legislativo deveria se inspirar em projetos como o do Ação Social pela Música do Brasil que é realizado dentro da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro e buscar um modelo de segurança pública que combine a prevenção com a repressão, garantindo que a cultura e a educação sejam pilares fundamentais da nossa sociedade. Somente assim, poderemos construir um futuro mais seguro e justo para todos, e não apenas prisões mais seguras para poucos.
Em vez de descontinuar ou reduzir o orçamento da Lei Rouanet, o que se faz necessário é enxergar a sinergia entre diferentes áreas. Por que não pensar em alternativas que aprimorem os estabelecimentos prisionais de segurança máxima sem descontinuar os investimentos em cultura? O aprimoramento das prisões pode e deve ser feito por meio da melhoria da gestão, da capacitação dos agentes penitenciários e da implementação de programas de ressocialização eficazes. A criação de parcerias público-privadas e a busca por fontes de financiamento que não dependam da retirada de verbas de programas sociais já existentes são exemplos de soluções viáveis.
A prevenção, por meio de programas como os fomentados pela Lei Rouanet, é indiscutivelmente mais eficaz e econômica a longo prazo do que o combate e a repressão. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que o investimento em educação e cultura nas periferias pode reduzir drasticamente os índices de violência. Cada real investido em cultura e educação pode gerar um retorno social significativo, ao passo que o custo de um único detento pode chegar a R$ 3.000,00 por mês, sem garantia de que ele não voltará a cometer crimes.
CAMINHOS PARA UM SISTEMA PRISIONAL MAIS EFICAZ
Aprimorar o sistema prisional de segurança máxima, conforme proposto pelo PL 508/2025, é uma necessidade. Contudo, essa melhoria não precisa ser feita às custas de políticas públicas de prevenção. Pelo contrário, as melhorias devem ser pensadas de forma integrada. O investimento nos presídios de segurança máxima, por exemplo, pode ser direcionado para:
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- Tecnologia e Inteligência: Em vez de simplesmente construir mais celas, o foco deveria ser no aprimoramento da tecnologia de monitoramento, no investimento em sistemas de inteligência para desarticular as facções de dentro para fora e no treinamento especializado de agentes penitenciários.
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- Educação e Trabalho: Dentro das próprias unidades prisionais, é crucial oferecer programas de educação, qualificação profissional e oportunidades de trabalho. Isso não apenas ajuda na ressocialização, mas também torna o sistema prisional menos suscetível à influência do crime organizado. Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) de 2022 mostram que a taxa de reincidência é significativamente menor entre os apenados que participam de atividades de educação e trabalho.
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- Combate à corrupção: O fortalecimento das instituições de controle e a transparência na gestão penitenciária são fundamentais para combater a corrupção, que é um dos principais fatores que permitem a atuação das facções criminosas dentro das prisões.
O PL 508/2025, em sua forma atual, propõe uma solução que aborda apenas a consequência do problema. Ao invés de priorizar apenas a punição, o Estado brasileiro precisa urgentemente de uma política de segurança pública abrangente, que combine o fortalecimento do sistema prisional com o investimento massivo em políticas sociais, educação e, sobretudo, cultura. A segurança de uma nação se constrói não apenas com muros altos e celas seguras, mas com oportunidades, dignidade e esperança para todos os seus cidadãos.
APRIMORAR PRESÍDIOS SEM DESCONTINUAR A LEI ROUANET
O cerne desse artigo é responder a seguinte pergunta: como aprimorar o sistema prisional sem descontinuar a Lei Rouanet, uma vez que o PL 508/2025 propõe exatamente essa troca? A questão de fundo é que, para o projeto de lei, o financiamento é um “ou isso, ou aquilo”.
No entanto, é possível pensar em alternativas que busquem solucionar a precariedade dos presídios sem sacrificar o incentivo à cultura. Algumas abordagens para essa questão poderiam ser:
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- Diversificação das fontes de recursos: Em vez de depender exclusivamente da Lei Rouanet, a política de aprimoramento prisional poderia buscar financiamento em outras áreas. Isso incluiria dotação orçamentária específica, recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), doações, legados e subvenções. A proposta original do PL até menciona algumas dessas fontes, mas a revogação da Lei Rouanet é o ponto central.
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- Aumento de investimentos em outras áreas da segurança pública: Aprimorar o sistema prisional pode ser visto como uma das diversas medidas para fortalecer a segurança pública. O financiamento para essa política poderia vir de um aumento geral do orçamento para o setor de segurança, sem a necessidade de direcionar recursos de outros setores, como a cultura.
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- Incentivo à iniciativa privada: Projetos de Parceria Público-Privada (PPPs) poderiam ser uma opção para modernizar a infraestrutura prisional. Empresas privadas poderiam ser responsáveis pela construção e gestão, com fiscalização do Estado. Isso liberaria recursos públicos para outras áreas.
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- Combate à corrupção e gestão eficiente: Uma gestão mais eficiente dos recursos já existentes no sistema prisional, aliada a um forte combate à corrupção, poderia gerar economia e permitir que os fundos disponíveis fossem melhor aplicados, sem a necessidade de buscar novas fontes que impactem outros setores.
O debate sobre o PL 508/2025 levanta uma discussão sobre as prioridades do governo e a forma como o orçamento é distribuído entre as diferentes áreas. A proposta de direcionar recursos da cultura para a segurança pública é vista como uma ameaça por defensores da Lei Rouanet e do setor cultural, que argumentam que a cultura também gera emprego e renda, além de ser fundamental para a sociedade.
Atualmente, o projeto está em tramitação e precisa ser aprovado pelas comissões de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania, além do plenário da Câmara e do Senado, para se tornar lei.